terça-feira, 20 de outubro de 2009



Percursos pela Igualdade

A maioria dos portugueses encara com pessimismo o recrudescimento da pobreza e mostra-se pouco crente numa inversão do quadro actual, sugere um inquérito desenvolvido pela Amnistia Internacional Portugal em colaboração com a Rede Europeia Anti-pobreza e a Universidade Técnica de Lisboa.

Os jovens em busca do primeiro emprego estão entre os mais vulneráveis.


O estudo da Amnistia Internacional Portugal, desenvolvido em parceria com a Rede Europeia Anti-pobreza e o Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do Instituto Superior de Economia e Gestão, tem por base uma amostra de 1.350 pessoas com 18 anos de idade ou mais e de 19 freguesias escolhidas de forma aleatória em todas as regiões do país.
Dos resultados preliminares do inquérito sobre "percepções da pobreza em Portugal", cujo conteúdo é revelado pela agência Lusa, ressalta uma conclusão: "Os portugueses sentem a pobreza e sentem-na numa proporção preocupante".

Setenta e sete por cento dos indivíduos inquiridos manifestam escassa ou nenhuma esperança na capacidade de recuperar de situações de pobreza. Setenta e cinco por cento consideram que o quadro regrediu nos últimos cinco anos e outros 50 por cento mostram-se convictos de que a situação vai continuar a ensombrar-se.

Quanto à percepção da intensidade e da extensão da pobreza, 59 por cento dos inquiridos situam a percentagem de pessoas pobres entre os dez e os 40 por cento. Quarenta por cento acreditam que metade da população vive em situação de pobreza. Somente seis por cento dos inquiridos descrevem como "miséria" a pobreza existente no país.

Novos grupos vulneráveis

No que toca à designação dos novos segmentos da sociedade mais vulneráveis à pobreza, 83 por cento dos portugueses inquiridos destacam os jovens à procura da primeira colocação no mercado de trabalho.

Se há duas décadas a percepção de vulnerabilidade recaía sobre os deficientes, doentes crónicos e minorias étnicas, a ideia que hoje prevalece estabelece um nexo entre a situação profissional e a pobreza. Em suma, a maioria dos inquiridos considera que a luta contra o fenómeno deve privilegiar a criação de postos de trabalho e o investimento público na formação profissional, no sector educativo e nos cuidados de saúde.

Já no que diz respeito à situação dos próprios inquiridos, os autores do estudo deixam também uma nota de preocupação. Vinte por cento dizem estar em risco de pobreza, enquanto sete por cento afirmam viver uma pobreza explícita e um por cento uma situação de miséria. Cinquenta e dois por cento afiançam viver com algum conforto, o que pode merecer duas leituras - uma resistência em reconhecer situações de pobreza ou a aceitação de uma situação de conforto reduzido.

Sinais de pobreza e atribuição de responsabilidades

Os inquiridos no estudo da Amnistia Internacional Portugal referem, como indicadores de pobreza, factores como a falta de água, de casa de banho ou de luz eléctrica. De acordo com o estudo, "a inexistência de condições mínimas da salubridade continua a ser o indicador de pobreza mais consensual, não havendo ainda menção alargada a formas de pobreza mais modernas".

Na óptica dos autores do inquérito, os resultados agora conhecidos tornam imperativa uma intervenção junto da opinião pública: "Não podemos esquecer que os conceitos de pobreza e de exclusão social são construídos e delimitados pelo mundo dos que se julgam incluídos. É aqui que é preciso, prioritariamente, actuar, não esquecendo os velhos pobres".

Grande parte dos inquiridos sustenta que cabe ao poder político apresentar soluções. Para a Amnistia Internacional e a Rede Europeia Anti-pobreza, isto significa que o país pode estar confrontado com uma desresponsabilização generalizada dos cidadãos face às situações de pobreza - uma percepção assente em afirmações como "eu pago os meus impostos, o Governo que resolva", ou "eu não tenho nada a ver com isso".

As organizações preconizam, por isso, a instituição de uma cultura social de co-responsabilização.


in site da RTP 1

Percursos de Liberdade

Os pecados do Haiti

Por Eduardo Galeano *


A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca idéia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito com um voto sequer.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colónia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das Leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos tinham conquistado antes a sua independência, mas meio milhão de escravos trabalhavam nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava do Haiti, ninguém vendia, ninguém reconhecia a nova nação.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar conseguiu reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. A essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, a modo de perda por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, ...... tem dimensões de tragédia,


* escritor uruguaio, autor da obra "As Veias Abertas da América Latina"

Tradução publicada no site da Agência Carta Maior, do original do jornal Brecha 556, Montevideo, 26 de julio de 1996.